Uma prévia com os primeiros capítulos da saga de "O Mundo dos Encantados" !
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A Princesa dos Incas
Em meados do século XVI, fugindo do domínio espanhol, uma comitiva liderada pela matriarca Mamalbuna chega a inóspita selva de Pindorama, na região da atual Amazônia brasileira, escoltando Moara Killare, a filha do último imperador do povo inca. A bordo de robustos barcos, os quéchuas destemidamente adentram aquele imenso mundo verde, em uma destemida missão: encontrar Manoa, a cidade fundada pelos tios da princesa, há mais de uma década e promessa de um novo lar. Moara, assombrada desde criança por visões sobrenaturais, é abordada por seres de outra dimensão, um lugar conhecido pelos nativos como Orokaba, o Mundo dos Encantados.
Uma ninfa das águas avisa Moara que seu trajeto está sendo perseguido por uma maléfica criatura que, na forma de uma grande sucuri, acompanha a sua comitiva, oculta nas profundezas do rio, Maria Caninana, a filha de Boiuna, um dos seres místicos de Orokaba. Cientes do perigo, eles seguem numa jornada que pode lhes custar as vidas. Sacerdotes malignos, seres assustadores e bruxas sinistras tecem planos para a princesa e seus companheiros nessa trama repleta de paixões, misticismo, feitiçaria e morte.
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1-Os incas estão chegando
O local: região hoje pertencente ao Estado do Acre, Amazônia Brasileira. O tempo: cerca de sessenta anos após a chegada dos europeus à América do Sul.
Entardecia quando dois barcos surgiram por uma das curvas sinuosas do imenso rio, cortando as águas amareladas em direção ao coração sombrio da inexpugnável floresta. Seus condutores tinham pressa, logo os raios animadores de Inti os deixariam. Acostumados aos altiplanos andinos, os quéchuas, ou incas como ficariam conhecidos, temiam a imensidão verde, que ao anoitecer se tornava horrivelmente escura e ameaçadora.
Bandos de Guaribas, empoleirados nos galhos das árvores costeiras, pareciam acompanhar-lhes o trajeto, assim como as araras e outras aves, que com suas cores deslumbrantes, vez ou outra, cruzavam a distância que separava as margens do caudaloso rio em suntuoso espetáculo.
Não era a primeira vez que esses seres presenciavam a chegada de estrangeiros. Os quéchuas sabiam disso. Muitos eram os povos da floresta e eles haviam sentido na pele a animosidade de alguns, quando na calada da noite escura, a fúria traiçoeira de flechas sedentas de sangue havia extirpado as vidas de valorosos companheiros.
No entanto, apesar das baixas, os deuses pareciam interceder por eles, guiando-os em sua jornada de fé e coragem. Eles ansiavam encontrar seus antecessores, que haviam ingressado há muito naquele gigantesco mundo esmeralda.
A pequena comitiva contava agora com quinze guerreiros, incluindo seu chefe. Trajavam saiotes de tecido cru, pois haviam se despido de suas túnicas andinas, tal era o calor sufocante que os afligia. Desdobravam-se no trabalho de remar e cuidar da proteção das quatro mulheres que seguiam no barco maior.
A mais velha dentre elas, aparentando uma idade avançada, mas ainda altiva e imponente, era a matriarca do pequeno grupo. Seu nome, Mamalbuna, mãe de um dos monarcas do grande Império Inca, agora falecido. Sentada em um banco estofado de penas e revestido de pele de alpaca, trajava uma túnica longa e colorida de cumbi, um nobre tecido andino fino e luxuoso, geralmente empregado nos vestuários da corte incaica. Sobre os ombros uma mantilha azul que protegia sua pele das picadas dos insetos. Na cabeça ostentava um toucado de ouro ornamentado com penas coloridas, o qual prendia seus cabelos grisalhos. Nos pés, sapatos de fibra vegetal.
Próximo da anciã, duas mulheres trajadas de modo mais simples, conversavam animadas. Seus trajes seguiam o padrão do vestuário andino, uma túnica que descia pelo corpo finalizando na altura dos joelhos, os cabelos negros eram parcialmente presos por uma tira de tecido colorida. Nos pés sandálias de couro de lhama.
No mesmo barco, mas do lado oposto, uma jovem na inexperiência de seus quinze anos, mantinha-se alheia observando o horizonte.
Uma das mulheres, se aproximando, lhe disse:
— Princesa, a senhora Mamalbuna requer sua presença.
A bela jovem mirou-a em silêncio com olhos que pareciam distantes. Nada disse. Sua atenção parecia focada na margem esquerda do rio.
— Princesa Moara, a senhora está bem? — insistiu a serva.
As nuvens que encobriam temporariamente o céu se deslocaram bruscamente e a luminosidade aclarou os trajes reais da princesa. A serviçal observou admirada.
Moara era uma princesa inca e embora não fizesse questão, sua avó a mantinha sempre que possível vestida a caráter. Os quéchuas valorizavam muito as vestimentas. Seus líderes deviam sempre aparecer bem trajados. Mamalbuna, não se descuidava disso. Suas presenças deviam motivar seus subalternos. Não eram elas descendentes de Inti, o deus Sol?
A princesa trajava uma túnica amarela, também confeccionada no nobre tecido da realeza andina. Uma tiara de ouro no formato de um pássaro, mantinham parcialmente presos os cabelos negros e lisos que desciam além dos ombros. Braceletes e pulseiras também de ouro ornavam seus braços. Contrariando os desejos da avó, a princesa deixara muito de seu aparato real guardado nos baús que trazia na viagem. Muita coisa era de ouro, o malfadado metal que despertara a cobiça dos estrangeiros de pele branca, ocasionando o extermínio de muitos de seu povo, inclusive o grande “Sapa Inca”, seu pai.
— Princesa? — repetiu a mulher, despertando Moara.
— Toltéia…
— A senhora não está bem, princesa? — Voltou a perguntar. — Sua avó a aguarda.
— Estou bem, Toltéia, apenas indisposta com o ritmo da viagem — e sorriu. — Vamos, não quero deixar vovó esperando.
Toltéia apreensiva acompanhou a jovem senhora. O olhar da princesa continuava estranho, absorto e isso a assustava. Sempre ouvira comentários sobre os presságios da princesa. Diziam que ela via e pressentia coisas ligadas ao misterioso mundo dos que já se foram. A mulher teve ímpeto de lhe perguntar sobre o que via, mas receosa, absteve-se. A matriarca aguardava, na companhia da outra serva e de um alguidar com frutas descascadas e cortadas.
— Moara, sente-se ao meu lado, precisamos comer.
— Minha avó…
— Está pálida, Moara! Não se sente bem?
— Estou bem, mas preciso dizer-lhe algo. — Calou-se, olhando séria para a avó. Mamalbuna, com o semblante contrariado, deu um sinal às subalternas para se afastarem.
— Toltéia e Deuaca são de nossa inteira confiança, Moara!
— Perdoe-me, vovó, mas não queria assustá-las. Na próxima curva do rio precisamos parar. Será preciso, minha avó. Por favor, confie no que digo.
— O que acontece, Moara? — Os olhos da anciã fixaram-se preocupados no pálido semblante da princesa.
— Eu vi, minha avó…
— O que você viu, Moara?
— A senhora sabe, as minhas visões… — A anciã ouviu estarrecida, procurando controlar o semblante. — Não sei se a mulher é deste ou do outro mundo, minha avó, mas ela me deu um aviso.
— Sagrada Pachamama, de quem você fala?
— A moça do outro lado do rio — e indicou com os olhos a margem oposta. — Ela falou comigo e me alertou do perigo que corremos com a chegada da noite.
— Pelos deuses, Moara! Não há moça nenhuma! Mesmo se houvesse como só você a ouviu, se estamos tão distantes da margem?
— Minha avó, não sei como explicar, mas em nome da deusa, acredite no que digo.
Nesse momento um grito ecoou vindo das profundezas da selva, muito alto, estridente, perturbador.
— Sagrada Pachamama! — pronunciaram as mulheres assombradas.
Os homens, temerosos, procuraram a anciã, cujo semblante continuava focado na neta. Moara, por sua vez, permanecia estática, os olhos fixos onde aparentemente não havia ninguém. Um sentimento de apreensão dominou a todos.
Após alguns segundos, Mamalbuna voltou-se aos subalternos, procurando acalmá-los:
— Não se preocupem, está tudo bem! Ariatão — chamou por um homem na outra embarcação.
— Sim, minha senhora…
— Precisamos parar. Na próxima curva do rio, procure um local adequado.
— Tem certeza, minha senhora? — retrucou um homem de mais idade que comandava direto os remadores dos dois barcos.
— Faça o que digo, Ariatão. Todos estamos cansados da viagem. As mulheres enjoadas. Carecemos de pisar terra firme.
O homem gesticulou com a cabeça, mal disfarçando sua contrariedade.
— Então, não dormiremos essa noite nos barcos?
— Não! Montaremos acampamento, mas não se preocupe, o deus Jaguar nos protegerá como sempre.
Ariatão deu ordens aos homens. Mamalbuna ignorou a sua irritação, a cada dia o homem se mostrava mais insolente.
— Quanto a você, minha neta — a matriarca diminuiu o tom de voz — fique ao meu lado, mas procure desanuviar o semblante. Não quero todos assustados. O que pensa que está fazendo?
— Sinto muito, minha avó.
— Toltéia e Deuaca estão apavoradas. Os remadores também. Não pense que a recrimino. É que não podemos deixar essa gente toda assustada, me entendeu?
Moara confirmou com um aceno de cabeça e se esforçando sorriu para a avó procurando tranquilizá-la, um turbilhão agitava seu interior. Sabia que Mamalbuna tinha razão. Ela assustava às vezes a avó com seu comportamento. Sentia-se diferente e percebia os olhares desconfiados, a ela dirigidos. As visões e as vozes, que por vezes surgiam, deixavam-na melancólica. Voltou o rosto até a margem esquerda do rio. A moça estava lá, sentada numa pedra. Os cabelos negros, lisos e longos caindo sobre os ombros. Uma veste cor de céu cobria parte de seu belo e esbelto corpo e sua consistência parecia vaporosa. Jamais vira ninguém assim. Seus olhos se encontraram. Ouviu de novo a voz soar em seus ouvidos como o canto de um pássaro:
“Fez muito bem ao avisar sua avó, princesa. Seu povo é sua responsabilidade. ”
“Minha avó é a matriarca. Meus pais morreram quando ainda era criança. Procuramos por meus tios que há muitos verões vieram para esta terra…”
“Sei de tudo o que me diz Moara, a sua mente é como um lago de águas cristalinas. Pondera que sua avó já se encontra em idade avançada e os deuses não tardam a chamá-la. Não fique triste, precisa ser forte e atenta aos perigos que surgem com a noite. Quando descerem, acendam fogueiras e orem para seus deuses. Ninguém deve procurar o rio! Alguns de seus subalternos vão se sentir atraídos para a água, não deixe! É sortilégio da maldita! ”
“ Quem? ”
“Caninana, a filha de Boiuna, uma criatura astuta e perigosa! Ela segue a sua comitiva, princesa, oculta nas profundezas dessas águas na forma de uma imensa sucuri. Com o cair da noite seu poder torna-se maior. Por isso faça o que digo, montem acampamento e evitem o rio. ”
“É tudo tão assustador! ”
“Não deixe o medo tomar seu coração, você não está só. Os deuses de seu povo te protegem, e os desta terra se agraciaram de ti. ”
A princesa ouviu emocionada. Por sua mente as imagens percorriam aceleradas, pensou em sua mãe. Com ela aprendera sobre Pachamama, a mãe Terra, a qual passara a cultuar. Seu pai, por sua vez, a chamava carinhosamente de “minha Princesa do Sol”. Não era ele, filho de Inti, o deus solar? Ela como sua herdeira também não seria?
Seus olhos se fixaram na imagem da bela mulher que agora parecia se tornar translúcida. Quem era aquela criatura diáfana de indescritível beleza? Uma deusa? Uma deusa desta terra selvagem e assustadora?
“Atenta ao que digo, princesa… —A voz a despertou de suas reflexões. — Suas dúvidas serão sanadas em seu devido tempo. Agora preste atenção. Além da filha de Boiuna, outros males espreitam na escuridão. Esta é uma noite de alta magia e as criaturas trevosas são tomadas por incontrolável sede de sangue. Há muito tempo uma bruxa poderosa teve seu filho morto por essas paragens e em sua ira lançou uma sinistra maldição. Criaturas sombrias insistem em atravessar os portais de outra existência. Alguns dizem que em busca da criança, ou do que ela tenha se transformado, outros à procura da própria feiticeira, há muito desaparecida. ”
“Por isso volto a dizer: todos devem permanecer em terra firme e as fogueiras acesas para espantar as feras. Não viajem esta noite, pois, o mal paira sobre as águas. ”
— Mas…
“Não se preocupe. Seu destino está na terra e não no rio. Seja paciente e confie na proteção dos deuses! ”
A embarcação nesse momento adentrou a curva do rio e a margem com a bela moça ficou para trás. Uma dor repentina invadiu o peito de Moara como um sinistro presságio. Ela ouviu a voz ressoando em sua mente:
“Confia na proteção dos deuses, Moara, você não está só. ”
A princesa sentou-se pensativa, sentindo os olhares da avó e das servas. Pensou no que Mamalbuna dissera sobre a impossibilidade de ela ouvir e falar com a moça. Tudo era muito curioso, sabia haver conversado com a misteriosa mulher, embora não usasse os lábios para isso. Era como se tudo se passasse apenas em sua mente.
À sua frente, uma ampla praia se descortinava do lado direito do rio. Os barcos diminuíram o ritmo procurando um local adequado. Uma lágrima insistente escapou dos olhos de Moara, que discretamente a enxugou. Sentia-se muito emotiva naquela tarde, a solidão doía–lhe na alma.
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2-A maléfica criatura do rio
As chamas da fogueira balançavam à mercê do vento e o cheiro de peixe assado impregnava o acampamento erguido numa clareira, não muito distante do rio.
Após limparem o local e improvisarem uma cerca, os quéchuas armaram algumas tendas que trouxeram, sendo a maior destinada à matriarca e sua neta. No chão forraram esteiras de junco, as quais cobriram com peles de lhama.
Trouxeram também no barco maior, além de diversos cestos com cereais e alimentos secos, utensílios, vestimentas e cobertores, um casal de lhamas.
O som de aves e macacos noturnos impregnavam a noite. Vez ou outra, gritos estridentes se propagavam do interior da selva. Naqueles momentos o coração da princesa se alarmava e ela se sentia tomada por terrível pavor.
Passara parte de sua infância na segurança do palácio, na fortaleza erguida em Vilcabamba, último refúgio da família real, ou o que restara dela, quando os espanhóis liderados por Pizarro, o conquistador, havia sobrepujado seu reino.
Moara não conhecera Cusco, a capital do império, mas ouvira desde criança os relatos tão bem delineados por sua avó. Quando o perigo parecera mais próximo, Mamalbuna optara pela fuga no intuito de salvar a princesa, a última herdeira do grande inca. Sua esperança era a filha Azane, que com o marido ingressara, há muitos verões, nas selvagens terras de Pindorama.
Joarino, um primo distante de Moara, fora escolhido como guia. O rapaz havia participado de duas das incursões do genro de Mamalbuna, Tupac Agogo, à Pindorama. Na época, o pai de Joarino não consentira que ele participasse da viagem definitiva. Joarino, muito observador, havia até o momento conseguido guiá-los pelo emaranhado de rios, evitando que embocassem pelos inúmeros afluentes que surgiam, assim como quedas d’água e bancos de areia. No entanto, seria preciso mais do que isso para que encontrassem seus parentes, naquela imensidão verde.
Moara estremeceu com a possibilidade de os planos da avó não darem certo. As últimas mensagens trocadas com seus tios datavam de longa data. O vozerio de uma discussão próxima chamou sua atenção. Reconheceu a voz alterada do chefe da guarda, Ariatão:
— Por que não podemos tomar banho no rio? Os homens querem nadar e se refrescar um pouco!
— Estamos em uma terra estranha e sujeitos a muitos perigos, é melhor deixarem o banho para amanhã, quando Inti aparecer.
— Não há perigo algum, a não ser o medo que sinto em sua voz, minha senhora.
— Não me desafie, Ariatão. Perdoarei sua insolência, pois sei que também se encontra extenuado da longa empreitada.
— Se alguém está cansado precisando se recolher é a senhora. Deixe que eu, como líder dos homens, resolvo isso.
— Não me desobedeça, Ariatão!
— Ariatão, mesmo sendo nosso comandante, não pode falar assim com a mãe do grande Inca e nossa matriarca. — Interferiu um homem que terminava os ajustes de uma tenda destinada às duas servas de Mamalbuna.
— Joarino, fique fora disso. Talvez a princesa, algum dia, possa ser nossa líder. Nós não sentimos sabedoria no comando da senhora Mamalbuna, apenas medo e indecisão.
Joarino ameaçou avançar, indignado com o desrespeito do comandante, mas a um gesto de Mamalbuna recuou. Deuaca e Toltéia observavam incrédulas sem saber o que fazer. Os demais se observavam calados.
Ariatão, confiante e seguro de si, voltando-se aos homens que liderava, falou altivo, sem dar importância à velha senhora, que nesse momento sentia o comando escapar por entre os dedos:
— Aqueles que têm coragem, venham comigo!
Moara nesse momento deixava sua tenda e ouvindo parte da conversa, indignou-se. Olhou para a avó. Ela já era uma anciã. Com certeza estaria cansada daquela fatigante jornada. Provavelmente, sentia-se sem força para enfrentar aquele homem rude, desrespeitoso, mas ainda forte e viril.
Vendo o guerreiro chamado Ariatão, semblante debochado, passar pela senhora fraca, vencida e humilhada, na companhia de seus subalternos, Moara pulou no meio do acampamento com um grito estridente e os olhos chamejantes. Todos estremeceram assustados.
— Parem! Parem! O que pensam que estão fazendo?
— Está louca, princesa? — inquiriu Ariatão, também alarmado.
— Louca? Pois, ouçam o que essa louca tem a dizer: aquele que for ao rio esta noite, não voltará! O mal passeia em suas águas escuras. A visão que tive nesta tarde me disse que quem fosse ao rio não voltaria. Demônios esperam por vocês, ocultos nas águas, sedentos por sangue.
— Tolice. Que mal há em tomarmos um banho? Logo estaremos de volta!
Mas olhando para os lados, Ariatão percebeu que o número de companheiros dispostos a segui-lo havia diminuído consideravelmente.
— Não importa, — bradou encolerizado —, quem não for covarde venha comigo!
— Vocês vão, mas não voltam! — finalizou a princesa num tom assustador. — E quanto a você, Ariatão, saiba que se retornar não será mais o comandante.
Ariatão olhou para Moara, incrédulo com o que ouvira. Confiava em suas capacidades de liderança e não contava que aquela menina o tratasse assim. Esquecera que naquelas veias corriam o sangue altivo dos monarcas incas. Se excedera com a matriarca, fora desrespeitoso e pagaria o preço por isso. Seus homens de confiança o haviam abandonado. Apenas dois, seu irmão mais novo e um primo, permaneciam ao seu lado. Para não perder a moral e a altivez de comandante e de homem, seguiu com os dois subalternos, se embrenhando no negrume da noite e deixando a segurança do acampamento para trás.
O silêncio se fez presente. Todos olhavam para a princesa admirados com sua postura altiva e assustados com seus presságios.
Moara estava pálida. Sem dizer uma palavra, seguiu em direção a sua tenda e se jogou em seu leito. Mamalbuna a encontrou desacordada, mergulhada num sono profundo.
O tempo até então sereno pareceu agitar-se, ventos assobiavam entre as árvores entoando uma sinistra canção. Todos procuraram o aconchego de suas tendas, apenas Joarino e mais dois permaneceram de prontidão. Além de manter as fogueiras acesas, se revezariam na vigilância do acampamento, aguardando o retorno do ex-comandante e seus companheiros.
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Moara seguia por um caminho na mata sombria, guiada pela parca luz do luar. Vez ou outra a claridade era tragada pelas nuvens escuras que corriam o céu ou pelas copas das inhaúbas que projetavam sombras ameaçadoras. Uma névoa se espalhava rente ao solo acompanhada de um silêncio angustiante. Parecia que em cada árvore à sua volta, olhos tenebrosos a fitavam.
Não se lembrava de deixar o acampamento. Sentia apenas que precisava encontrar Ariatão e seus companheiros e se possível salvá-los de um destino aterrador.
Cansada, sentou-se num tronco caído. Estava perdida naquele labirinto assustador. O cantarolar de uma voz feminina a fez estremecer.
Como se obedecesse a um comando invisível, Moara ergueu-se e seguiu em direção ao canto bizarro. O pavor tomava seu peito de sobressalto, mas as pernas não a obedeciam.
Sentiu pisar na areia esbranquiçada da praia. A lua cheia iluminava o imenso rio. Das águas escuras, lentamente começara a abrolhar uma figura fantasmagórica. Era uma mulher de pele muito branca, uma palidez assustadora. A boca de um vermelho tinto, sanguinolento. Os cabelos claros e esverdeados se agitavam como se tivessem vida própria, enquanto os olhos grandes e ameaçadores brilhavam como tochas incandescentes.
A princesa tentou correr, mas as pernas entorpecidas não a obedeceram. Tentou gritar, mas a voz morreu abafada na garganta. Sentiu a cabeça tontear e o coração descompassado saltar no peito.
Percebendo que os sentidos logo lhe faltariam e que o abraço da morte a arrastaria a um horror sem fim, rogou em pensamento a proteção dos deuses. Lembrou-se da bela dama da praia, pedindo que não fosse ou deixasse ninguém se aproximar do rio. Não entendia porque a havia desobedecido e se aventurado em situação tão desesperadora.
Pensou então em Ariatão e seus companheiros. Onde estariam? Uma sinistra gargalhada ecoou. À sua frente, a apavorante criatura alcançara a praia e erguendo uma das mãos, arremessou algo em direção a Moara. Três objetos arredondados, cruzaram o espaço, caindo aos seus pés. A princesa horrorizada constatou serem as cabeças dos três homens. Reconheceu o semblante de Ariatão. Este a mirava com os olhos inexplicavelmente vivos, enquanto de sua boca entreaberta, uma baba sanguinolenta escorria.
Moara gritou desesperada. Nesse momento, o maior dos horrores vinha em sua direção com os cabelos esvoaçantes, ora cobrindo os seios nus, ora se agitando no ar. Tinha os braços apoiados ao solo e se arrastava na areia como um réptil. Assustada, a princesa percebeu que em vez de pernas, a criatura possuía o corpo longilíneo de uma cobra, cuja extremidade da cauda ainda permanecia no rio, submersa nas águas enevoadas.
Ouviu uma voz distante lhe chamar: “Moara, você precisa voltar. Volte Moara, volte”!
Reconheceu aquela voz, era a moça da praia!
Nesse momento, os cabelos da criatura, como tentáculos, se aproximaram dela. Todavia, Moara não sentiu mais medo e admirada, percebeu que os tentáculos passavam por ela sem atingi-la, como se o seu corpo não tivesse mais consistência sólida. Sentiu-se leve e percebeu que se desprendia do solo. Pensou: “Será que estou morta? ” Volveu os olhos para a criatura, mas sem entender, constatou que a observava de cima para baixo. Estava flutuando!
Ouviu um grito de ódio escapar da boca do ser grotesco que tentava a todo custo alcançá-la. Tudo à sua volta começou a girar e ela se sentiu naufragar num precipício sem fim.
Um estremecimento sacudiu o seu corpo. Acordou no leito, encharcada de suor e o coração descompassado. Tudo não passara de um horrendo pesadelo!
Numa esteira próxima, a avó ressonava. Procurou por uma cabaça com água e sorveu longos goles. Olhou para fora da tenda, o brilho da fogueira havia diminuído. Pelo jeito, todos já haviam se recolhido. Encolheu-se e cobriu a cabeça, pois fazia muito frio. Lá fora, da floresta escura, ruídos assustadores cortavam, vez ou outra, o silêncio da madrugada. Permaneceu boa parte da noite acordada, voltando a dormir, pouco antes do amanhecer.
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Uma névoa se espalhava rente ao solo acompanhada de um silêncio angustiante.
3-O emissário de Tupac Agogo
No entardecer do nono dia, enquanto reforçava o cercado do acampamento, Joarino, na companhia de dois ajudantes, surpreendeu-se com a chegada de visitantes. Trajavam plumas e penas, os corpos pintados, quase nus. Desembarcaram de uma grande igara, a qual acomodaram próximo aos barcos de junco. Antes que o rapaz desse o alarme, reconheceu aliviado o líder do pequeno grupo, era Itubira, conterrâneo seu e um dos homens de confiança de Tupac Agogo, o tio de Moara.
A princesa descansava em sua tenda, quando percebeu um burburinho no acampamento. A cabeça de Deuaca surgiu entre as frestas da cabana, lhe avisando que emissários de Tupac Agogo os havia encontrado.
Os quéchuas permaneceram no acampamento durante esses longos dias. A matriarca insistia em retomar a viagem pelo rio, mas Moara era contra.
Joarino, que assumira o posto de comandante, havia reforçado a segurança do local. Um cercado guarnecia o acampamento. A situação, no entanto, era preocupante. As provisões que trouxeram há muito acabaram. Por sorte ou pela ajuda dos deuses, as águas de Pindorama eram férteis. Os homens pescavam pela manhã e as mulheres cuidavam da refeição comunitária. Em um dos passeios pela praia, Deuaca descobrira ninhos de tartaruga e sorridente trouxera duas rumas de ovos para o acampamento.
Ariatão e seus companheiros não retornaram no dia seguinte a primeira e conturbada noite. Joarino enviara batedores logo pela manhã. Na metade do dia retornaram com notícias desconcertantes. Haviam localizado os três corpos, todos com as cabeças decepadas, as quais não foram encontradas.
A tensão se abatera sobre todos. À noite, ninguém se afastava do acampamento. As fogueiras eram acesas e os portões do cercado fechados. As mulheres queimavam ervas secas que trouxeram de sua terra. O odor acre e nauseante repelia insetos, cobras e outros bichos peçonhentos.
Moara evitava pensar no sonho que tivera, mas era quase impossível: as cabeças de Ariatão e de seus companheiros rolando na areia com os olhos horrivelmente vivos a fitá-la! E aquela coisa, que não era nem mulher, nem cobra, se arrastando em sua direção? Associou a criatura ao aviso da moça da praia, tentou se lembrar do nome mencionado, mas não conseguiu. Talvez fosse melhor assim, concluiu. Voltou a pensar nos corpos encontrados sem cabeças! Eles confirmavam a sinistra realidade daquele horrendo pesadelo!
Suspirou, controlando os pensamentos, enquanto deixava a tenda na companhia de Deuaca.
Avistou o enviado de seu tio, o tal Itubira, que a serva mencionara. Ele trajava uma roupa à moda andina, o que o diferenciava dos demais. Uma túnica de tecido esverdeada com desenhos quadriculados nas barras, calçava sandálias de couro e na cabeça uma tira larga de tecido que protegia a testa dos cabelos lisos e negros que caíam à altura dos ombros. Era belo devido à juventude e rigidez do corpo másculo e definido, mas o rosto um tanto inexpressivo. Com ele viera gente que nada tinha a ver com seu povo, mas que se comportava como se o fosse.
Aproximou-se então para melhor entender o que conversavam.
Percebeu tristeza no olhar de sua avó. Itubira não trouxera boas notícias. Azane havia morrido há algum tempo, após o parto de seu primeiro filho.
— E a criança, Itubira? — perguntou a anciã com o olhar distante sem fitar o rosto do rapaz.
— Infelizmente seu neto também não resistiu, minha senhora.
A matriarca permaneceu em silêncio. Ao avistar Moara, suspirou fundo dizendo:
— Morta! Minha filha amada, morta! Sagrada Pachamama, o que nos resta, então?
Itubira não sabia o que dizer. O clima que parecia festivo se tornou pesado. As servas, Joarino e os demais observavam calados.
Moara se aproximou e tocou na mão de sua avó, ela estava fria.
— Minha avó, estou aqui, nunca a deixarei sozinha.
Mamalbuna, agradecida, voltou os olhos para Moara, mal contendo as lágrimas.
— Sinto muito! — arriscou Itubira desconcertado. — Saiba que pode contar sempre com minha sincera amizade.
— Agradeço sua preocupação, Itubira. Apenas necessito de tempo para serenar a dor que me transpassa o coração.
— Certamente, senhora.
— Você se lembra de Moara, Itubira? — disse apertando a mão da neta com mais força. — Moara é tudo que me resta, Itubira!
— Princesa Moara killare! Quando deixei o reino a senhora era pequenina!
— Senhor, não carece que me chame princesa. Fui princesa quando o reino do meu pai existia. Aqui estamos em terras estrangeiras e sujeitos a novos costumes.
— Você sempre será a nossa princesa — disse Joarino.
— E nós a seguiremos até os confins da terra, se for preciso. — Completou Deuaca.
Os demais concordaram, manifestando total apoio. Itubira observou admirado. Antes que Moara dissesse algo, Mamalbuna falou:
— Inti os cubra de bênçãos, meus leais amigos. Embora meu coração esteja sangrando, sei que devo guardar a minha dor. Os deuses ouviram nossas preces e em breve estaremos com nosso povo, comemorem esse momento!
Todos voltaram a se animar e em pouco tempo, guiados por Joarino, retomaram suas atividades, agora animados com os preparativos da viagem. A matriarca, sua neta e Itubira adentraram uma das tendas. Muito havia a ser planejado.
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Inquirido por Moara sobre como os havia localizado, o jovem comandante inca, após um gole de chicha[1], o qual Deuaca servira com milho assado e algumas bananas, respondeu:
— Ah, princesa! Essa é uma curiosa história e devo lhe confiar que só se tornou possível pela ajuda que tivemos de Itacira, uma velha–xamã que reside no coração da floresta, e que por alguns dias alojou-se no palácio de seu tio. Ela nos indicou como encontraríamos vocês.
Os olhos de Moara brilharam curiosos.
— Que interessante, não acha vovó? —Mamalbuna nada respondeu. Permanecia mergulhada em suas tristezas. Itubira prosseguiu:
— Itacira é muito sábia, princesa. Tanto seu tio, quanto a rainha confiam nos conhecimentos dela. Itacira esteve por pouco tempo em nossa cidade, foram alguns dias. Antes de partir disse:
“Procurem a princesa de seu povo. Ela vem pelo curso do rio, mas teve que parar. Vocês a encontrarão na terceira curva do rio após passarem pela aldeia do chefe Aruati. Mas aconselho que se apressem, eles tão sendo seguidos por coisa ruim.”
Ouvi arrepiado, a voz de Itacira tava diferente. Depois, quando a questionei procurando mais detalhes, ela apenas riu e não disse mais nada, como se não lembrasse do que acabara de pronunciar. Tupac Agogo ordenou que partíssemos imediatamente.
— Que incrível — comentou Moara.
— Uma Kollahuaya, conheço bem essa gente! — interrompeu Mamalbuna. Seus olhos pareciam distantes como se perdidos no tempo. Por sua memória, imagens desfilavam como um turbilhão. Relembrou-se do momento em que três anciãs adentraram o palácio de Cusco na companhia de uma jovem, eram peregrinas que traziam a cura aos desafortunados do corpo e do espírito. O sacerdote as chamara. O príncipe, futuro Sapa Inca, a dois dias queimava de uma febre interminável. Sua Mãe, ela, Mamalbuna não deixava sua cabeceira.
As curandeiras permaneceram por três dias e ao término deste o príncipe estava curado, embora seu coração estivesse comprometido. Ele havia se afeiçoado a jovem aprendiz que acompanhava as anciãs e tão calorosa fora a sua paixão que a escolhera por esposa. Enfrentou todas as oposições da casta andina, dos sacerdotes e do próprio pai. Mamalbuna o apoiou, como sempre e dentro de um ano ele se casou com a jovem mãe de Moara.
As imagens, breve como vieram se dispersaram, a matriarca olhou fundo nos olhos da neta.
Moara surpreendeu-se, imaginou que sua avó não prestasse atenção na conversa. Melhor assim, por mais dolorida que fosse a morte de Azane, elas precisavam reagir.
— Aqui nestas terras, senhora, — disse Itubira — chamam romi kumu, que quer dizer mulher xamã.
— Romi-kumu — monologou Moara.
— Mas Itacira disse que estão sendo seguidos. — Os olhos de Itubira percorreram os semblantes da princesa e de sua avó. — Isso também é verdade?
Mamalbuna, desconcertada, olhou para Moara. Itubira seguiu o seu olhar. Moara suspirou fundo.
— Senhor Itubira, durante nossa viagem tivemos contato com algumas populações ribeirinhas e todos foram amistosos, salvo o dia em que sofremos ataques de flechas e infelizmente perdemos alguns de nossos companheiros.
— O Cuyari é perigoso, princesa. O povo local o chama de Rio das Flechas.
— Sagrada Pachamama! — disse a princesa.
— Há aldeias muito agressivas em suas margens, graças aos deuses suas perdas foram poucas!
— Sim, que os deuses recebam nossos valorosos amigos. Mas prosseguindo sobre o que me perguntou, senhor Itubira, depois que acampamos algo diferente aconteceu. Algo que talvez confirme as visões dessa senhora xamã.
A princesa resumiu o ocorrido com Ariatão e os dois desafortunados que haviam desobedecido sua avó e encontrado a morte nas águas do misterioso rio. Mamalbuna percebeu que a neta evitara mencionar suas visões.
— Sagrado deus Jaguar! Quando cheguei, percebi a preocupação de Joarino com o cercado. Princesa, muitos são os relatos de coisas assombrosas que existem nessas matas, desde cobras de tamanhos colossais a criaturas apavorantes. Mandarei meus homens auxiliarem na defesa do acampamento.
— Agradecida, Itubira — disse Mamalbuna.
— Logo deixaremos esse local. Em Manoa, estaremos seguros. A cidade é uma verdadeira fortaleza.
— Senhor Itubira, em seu relato o ouvi mencionar uma rainha. Meu tio casou-se de novo?
— Sim, princesa.
Os olhares de Moara e de Mamalbuna cruzaram-se instintivamente.
— A rainha é uma nativa dessas terras e seu nome é Agaska — prosseguiu o rapaz. — E, por favor, princesa, me chame apenas de Itubira. Moara esboçou um sorriso. Seu coração estava apreensivo. Breve silêncio se fez. A matriarca se propôs a quebrá-lo:
— Seguiremos viagem por terra ou por rio?
— Por terra, minha senhora. Joarino me mostrou os seus barcos, eles carecem de cuidado. Fizeram muito bem em acampar, os barcos de junco estão avariados. Imaginem o perigo de naufragar nessas águas!
A anciã olhou para a neta. Se não fosse por Moara, eles teriam seguido viagem.
— Estamos muito longe da cidade de meu tio?
— Sim, mas não se preocupe. Seguiremos até a taba do chefe Aruati, um aliado de seu tio, princesa. Temos barcos em bom estado a nossa espera. De lá, após o devido descanso, voltaremos ao curso do rio. Em dois dias chegaremos em Manoa.
Mamalbuna esboçou um semblante preocupado. Moara sorriu para a avó procurando animá-la. A fisionomia da anciã parecia esgotada.
— Disse que nem todos caberiam em sua embarcação? — inquiriu a aprincesa.
— Sim, mas podemos dividir o grupo. Imagino que sua preocupação seja com o trajeto a pé.
— Sim, senhor Itubira. Estamos todos exauridos, inclusive vovó.
— Não se preocupe comigo, minha neta.
— Dividiremos o grupo, como falei, princesa. Em minha Igara, além de quatro remadores, posso acomodá-las. A viagem não será tão confortável quanto em seus barcos de junco, mas chegaremos primeiro. O restante do pessoal, Aimberê, meu homem de confiança, guiará por terra até a aldeia.
O semblante de Mamalbuna pareceu iluminar-se. Moara disfarçou a preocupação. Não gostaria de voltar àquelas águas, mas faria isso pela avó.
— Então está combinado, Itubira — concordou Mamalbuna. — Agora coma e descanse um pouco.
— Agradecido, Senhora! É melhor partirmos bem cedo, logo que Inti surgir. Assim chegaremos à taba de Aruati antes do meio do dia.
— Muito bem, Itubira, faremos assim. Agora vamos, Moara.
Quando avó e neta deixaram a tenda reservada a Itubira, passaram por Toltéia, que vinha com um cesto com peixes assados.
Um sentimento de inquietação tomara conta da princesa. Ela orou aos deuses e a imagem da moça da praia voltou a preencher seus pensamentos.
A noite desceu sobre o acampamento e o sono da princesa mais uma vez fora carregado de sombrios pesadelos. Avistou a criatura reptiliana deixar as águas e vagar pela praia como se procurasse alguma coisa. Acordou tomada de pavor, sentindo calafrios percorrerem seu corpo.
Agradeceu a Inti quando vislumbrou os primeiros raios de sol pelas frestas de sua tenda. Logo deixariam aquele local assustador.
Todavia, grande fora a surpresa da princesa, quando homens de Itubira avisaram que a canoa havia sido destruída, assim como o que restara dos barcos de totora.
— Sagrado Inti! — comentou Itubira alarmado com o que poderia haver causado tamanha destruição. Moara absteve-se de responder. Em sua cabeça passava as palavras da moça da praia: “Não se preocupe. Seu destino está na terra e não no rio.”
Ciente das preocupações de Moara, o comandante ordenara a seus homens que preparassem uma liteira para Mamalbuna. A matriarca agradeceu, mas disse que só usaria desse aparato quando estivesse realmente cansada, iniciara a viagem a pé ao lado de sua neta.
Apressaram-se e Itubira organizou o grupo. À frente, seis homens seguiam abrindo o caminho na mata espessa. Sendo que mais oito se encarregavam de cuidar do final da fila, armados com lanças, flechas e tacapes. Tinham os olhos vigilantes e os ouvidos atentos à aproximação de qualquer perigo que ameaçasse os flancos do pequeno cortejo.
Os quéchuas liderados por Joarino levavam as mudanças em vários cestos de palha amarrados às costas, enquanto um deles tangia o casal de lhamas que, carregado com balaios, se mostrava relutante em adentrar a selva, com a qual não tinha a menor afinidade. Próximo à Moara e sua avó, seguiam as fiéis Toltéia e Deuaca e o líder Itubira.
Em pouco tempo o acampamento, até então seguro e acolhedor, ficara definitivamente para trás.
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4-Na aldeia dos magutas
A viagem fora árdua. Passava do meio do dia quando adentraram a uma clareira e avistaram uma imponente paliçada erguida como a desafiar o mar de árvores, cipós e aglomerado vegetal que a rodeava. Haviam enfim chegado a aldeia do grande chefe Aruati.
Foram recebidos com alarde pelos vigilantes. Um grupo de curumins correram eufóricos e em pouco tempo mulheres e homens se juntaram a eles em torno dos visitantes, falavam em idioma não compreendido pelos quéchuas e sorriam eufóricos em direção da princesa, sua avó e as mulheres.
As crianças curiosas acercaram o casal de lhamas, tocando em seu pelo. Os bichos arredios cuspiam em algumas delas. Aimberê largou uma longa risada, seguido por Itubira e os demais. Moara olhou preocupada para a avó. Além de extenuada pela viagem, Mamalbuna fazia caras e bocas, insatisfeita com aquela recepção, íntima demais para seu gosto.
A princesa não perdia um detalhe. A começar pelas moradias: choupanas de formatos cônicos com teto em ponta, distinto de tudo o que já havia visto, rodeavam a imensa aldeia. Algumas, de considerável porte, eram revestidas de palhas. O cortejo guiado por Itubira parou em frente da maior delas, a choça do grande chefe e sua família, ou melhor, famílias. Foi o que a princesa descobriu, quando Aruati surgiu alegre a recebê-los, rodeado de suas quatro esposas e de seus trinta e poucos filhos.
Aruati era uma figura interessante, alegre e jovial. Parecia rir e se divertir com qualquer coisa. O rosto arredondado, o tronco largo e as pernas finas. O cabelo preso por um cocar de plumas esverdeadas. Era mais simpático que bonito. Uma barriga um pouco proeminente que se destacava do saiote de tecido cru, era o que denunciava ter mais idade do que aparentava para um homem de quarenta e poucos verões.
Suas esposas pareciam não possuir a menor vaidade, se davam muito bem entre si, ajudando umas às outras nas tarefas de cuidar dos filhos e do bem-estar do marido que compartilhavam. Olharam cismadas para Moara e as mulheres que a acompanhavam.
Como a linguagem era desconhecida, Itubira encarregou-se das devidas traduções. Admiraram-se, a princesa e sua avó de haverem sido reverenciadas por aquele povo tão atencioso e acolhedor. Itubira, a meia voz, lhes disse:
— Senhoras, não os tenham como ingênuos. Esses homens além de guerreiros são caçadores admiráveis e seus antepassados cultuavam o gosto por carne humana. Foi o tio de Aruati, o antigo cacique, que conseguiu a duras penas abolir essa prática da aldeia.
— Aruati não herdou o direito do pai? — Perguntou curiosa Moara.
— Não, princesa, o pai de Aruati é o xamã. Seu irmão é que era o cacique. Antes de sua morte nomeou o sobrinho ao título, pois tivera apenas filhas mulheres.
— Aruati é kuraka de meu tio, Itubira? — inquiriu Moara.
— Sim, princesa, mas é melhor evitarmos mencionar o nome do grande chefe que já me olha curioso querendo intender o que se passa.
Itubira, voltando-se ao chefe, conversou em sua língua nativa, um dialeto tucano, o qual a princesa e sua avó não compreendiam.
Pelas palavras de Itubira, Moara percebeu que Tupac Agogo, almejava seguir o formato de colonização implantado pelo Tawantinsuyu. Cada aldeia ou cidade conquistada tornava-se parte do Império, devendo obediência ao monarca, assim como pagamentos de tributos. Tinham liberdade para cultuarem seus deuses locais e eram protegidos pelo poderio bélico do império.
Observou melhor aquele povo seminu entregue aos seus afazeres. As mulheres com grandes potes de barro na cabeça, algumas com crianças penduradas às costas, atadas por tiras de couro e palha trançada, outras à beira de fogões rústicos assando bijus ou preparando farinha. Crianças, sujas de terra, brincavam pelos cantos. Curiosas, se aproximavam, vez ou outra, querendo tocar nos bichos ou nos visitantes. Os homens, corpos coloridos, enfeitados com tiras e penas, quase nus. Iam e vinham carregando o resultado da caçada comunitária: macacos, tatus, teiús… Eram recebidos com alegria pelas mulheres e crianças. Animados, voltavam, vez ou outra, os olhos para os recém-chegados e esboçavam sempre um largo e amistoso sorriso.
A voz de Mamalbuna, a convidando para descansar, interrompeu as reflexões de Moara. Uma grande choupana de sapé fora destinada ao descanso delas. Embora a curiosidade convidasse a conhecer tudo à sua volta, a princesa se sentia extenuada com a longa viagem. A avó já se encontrava acomodada em uma rede, Toltéia e Deuaca ajeitavam algumas esteiras de palha para o descanso delas e da princesa.
Lá fora, a diversão ficara a cargo dos dois animais de carga, todos queriam mexer e tocar neles. Os bichos enfezados respondiam com coices e cuspes para todos os lados.
Um pouco afastado, um grupo de mulheres preparavam as comidas e as beberagens para mais tarde, pois naquela noite haveria festa em homenagem aos recém-chegados, os parentes do Imperador e Moara teria uma das maiores surpresas de sua jovem e atribulada vida.
Aqui termina nossa prévia, caro leitor, espero que tenha gostado.
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Abraços fraternos e que Pachamama abençoe suas leituras.
De seu amigo de sempre
Alexandre menphis.
[1] Chicha é uma bebida fermentada à base de milho e outros cereais.
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