Os primeiros capítulos - Uma prévia do livro de fantasia sombria de Alexandre Menphis.
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Capítulo 1- Uma Princesa amargurada
Cidade de Cusco, apogeu do Império Inca – cerca de cento e cinquenta anos antes da Invasão espanhola.
Amanhecia, e os primeiros raios de luz incidiam sobre os telhados de palha trançada, refletindo na camada fina de gelo que se acumulara durante a fria madrugada. Era uma claridade ainda tímida, resultante da transição das estações. Os sacerdotes já haviam prenunciado a chegada de tempos mais amenos, o que era aguardado por todos, excetuando uma nobre senhora que, da janela dos seus aposentos, indiferente, observava o despontar do dia. Seu nome, Sulemaika, uma das princesas do Império Inca.
Filha do antigo Sapa Inca[1], já falecido, e irmã do atual monarca do império, a princesa Sulemaika jamais havia se casado ou se envolvido com alguém. As pessoas temiam seu olhar rígido, quase desprovido de emoções, e diziam que o seu coração era mais frio que a geada que açoitava a cidade durante as longas noites de inverno; diziam também que jamais haviam presenciado em sua boca um sorriso amistoso sequer. Passaram então a chamá-la de Princesa feia.
Sulemaika, por sua vez, parecia não se importar. Não ostentava vaidade, nem se preocupava, como as donzelas da sua idade, em mostrar-se interessante ao sexo oposto. Os poucos pretendentes foram recusados, pois sabia que não passavam de manobras do seu bondoso pai. O velho monarca, que muito a estimava, terminava sempre aceitando suas recusas, assim como acatava seus pequenos desejos, sem jamais obrigá-la a nada. Sulemaika tornara-se adulta e, após a morte do genitor, os anos lhe trouxeram a solitária maturidade. Era respeitada, temida e odiada. Todavia, jamais se sentira amada ou se apaixonara por alguém. A única pessoa que lhe despertava algum afeto era sua leal serva, Hauka, uma senhora de meia-idade que a servira durante toda sua vida.
No entanto, nas últimas semanas, um acontecimento mexera com o coração da princesa. Durante a comemoração do Inti Raymi[2], o imperador ordenara que fosse celebrado o noivado de Nayarak, sua filha mais velha, com o filho do kuraka[3] de uma aldeia distante. Convidado pelo soberano, o príncipe viera para Cusco. Quando conhecera o jovem Pumawari — era esse o nome do prometido da sobrinha —, Sulemaika sentiu o coração acelerar. Suas pernas ficaram trêmulas e uma palidez repentina tomou-lhe a face. Na primeira oportunidade, buscou a segurança dos seus aposentos. Contudo, por mais que procurasse se entreter, a imagem do belo guerreiro não lhe saía da cabeça. De madrugada, sentindo um calor sufocante, procurou por uma piscina com água fria. Quando mais calma, ao deixar o tanque de pedra, observou seu reflexo na água parada e sentiu um aperto tomar-lhe o coração. Estava velha! Como poderia, de alguma forma, chamar a atenção do ilustre guerreiro ou mesmo rivalizar com a beleza jovial da sobrinha? Suspirou aterrorizada frente aos próprios pensamentos: estaria apaixonada?
Um misto de medo e rancor percorreu seu coração. Sentiu ódio por não ser bela, por sua mãe havê-la concebido assim — feia e sem atrativos — e desprezo aos deuses por submetê-la a tão injusto castigo. Por que não se encantara por alguém assim quando jovem? Quando bastasse apenas um pedido para que seu pai lhe atirasse aos pés o pretendente que escolhesse? Por que nessa época não aparecera alguém como Pumawari? Estariam os deuses se divertindo com seu sofrimento? Pensou na sobrinha, afortunada criatura, e sentiu um calor tomar-lhe a face. Nayarak podia ser fútil e desmiolada, mas seu corpo era jovem e encantador. De suas carnes o belo rapagão iria se fartar quando eles estivessem casados. Uma lágrima desceu-lhe pela face e, embora fria, parecia queimar o seu rosto.
— Minha senhora, trouxe sua refeição, é preciso que coma um pouco e se agasalhe. — A voz da serva a despertou das suas abstrações. A mulher aproximou-se da princesa e tocou em seu braço.
— Está gelada, minha senhora! Por favor, afaste-se dessa janela. O dia, apesar de claro, ainda promete ser muito frio.
Sulemaika a olhou indiferente, mesmo sabendo que as palavras de Hauka estavam cobertas de razão. Seu corpo estava frio, embora seu coração parecesse queimar. Guiada por Hauka, sentou-se em um banco estofado com penas e coberto com pele de jaguar. Ignorando o desjejum, cobriu o rosto com as mãos e, descontrolada, deu vazão à sua angústia.
A serviçal, preocupada, perguntou o que afligia sua senhora. Sulemaika soluçava. Por fim, acatando as insistências da serva, desabafou parte do seu infortúnio:
— Padeço, bondosa Hauka, de uma dor que jamais pensei um dia sentir! No entanto, não lhe posso contar a razão desse meu sofrimento, apenas sei que me encontro irremediavelmente perdida.
— Minha senhora, tenha confiança nos deuses e clame pela ajuda divina.
— Não acredito que os deuses se importem com o que nos acontece. Por isso jamais lhes supliquei nada.
— Então está na hora, minha senhora.
— Não, Hauka, prefiro não me iludir.
— A senhora não deve pensar assim, princesa, sempre há uma solução...
— Não para o meu caso.
— Sempre há, minha senhora, mas é necessário que acredite, digo isso por experiência própria. Já havia percebido uma tristeza em seu semblante e entendo que as dores causadas pelo coração sempre são as mais difíceis de serem suportadas. Não carece que me conte nada, apenas que não se deixe abater dessa forma.
— Ah, estimada Hauka! Suas palavras me soam confortantes, embora não acredite que possam de alguma forma ajudar-me. Por outro lado, percebo em seu olhar que deseja confiar-me algo, mas temerosa, procura conter as palavras. Sempre fui condescendente contigo Hauka, e em contrapartida, tem se mostrado de minha inteira confiança. Dessa forma, se deseja me confidenciar alguma coisa, então diga.
A velha serva pigarreou e, após olhar de soslaio para a porta, como a certificar-se de que ninguém se aproximava, prosseguiu:
— Minha senhora, o que tenho a dizer é muito importante e espero que me perdoe caso a desagrade com este assunto, pois envolve forças misteriosas do outro mundo, daqueles que não mais vivem.
A princesa a olhou curiosa e a serva prosseguiu:
— Conheço uma pessoa que sabe lidar com essas forças poderosas. Ela saberá como atenuar a sua aflição e, se não lhe for possível extirpar todo o mal que lhe angustia, ao menos conseguirá amenizar o seu sofrimento.
— Continue, mulher, embora não acredite nessas coisas, me diga quem é essa pessoa.
— Na floresta, além do rio, vive uma senhora ermitoa, conhecedora de muitos mistérios. É ela portadora de dons e capaz de destilar os mais poderosos sortilégios...
— Uma Kollahuaya[4]?
— Não, minha senhora, Kulkucaia é muito mais. Ela saberá como ajudá-la.
A princesa se ergueu pensativa, os dedos se cruzando de forma inquieta, o olhar introspectivo.
— Senhora?
— Kulkucaia, você disse? — Parou por um instante, enquanto levava uma taça de ouro aos lábios. Hauka havia lhe trazido leite de lhama e milho-cozido.
— Sim, minha senhora. Kulkucaia, é esse o nome da prestigiosa curandeira.
— Já ouvi esse nome há muito, muito tempo. Recordo, quando criança, de minha bisavó falando sobre ela. Seria a mesma pessoa?
— Creio que sim, minha senhora. Dizem que a mulher é velha como o tempo.
— Nunca acreditei ou me imaginei procurando alguém assim — comentou a princesa enquanto finalizava o conteúdo da taça. — Mas sempre há uma primeira vez para tudo. — Calou-se pensando: “até para o que os homens chamam amor”.
— Minha irmã Suyana, certa vez, procurou pelos serviços da senhora Kulkucaia, quando se viu apaixonada pelo nobre chefe da guarda.
— O meu primo, o comandante Acoapate? Mas eles não são casados?
— Sim, minha senhora, mas minha irmã teve trabalho com o comandante. Ele não queria casar com ela, não.
— Como assim? Não me esconda nada.
— Ela tinha confiado sua “mocidade” a ele, que lhe prometera casamento. No entanto, após conseguir o que queria, Acoapate a abandonou, passando a se interessar por uma donzela mais jovem e mais bem-apessoada. Desesperada, Suyana recorreu à Kulkucaia, que lhe deu o prazo de uma noite para que o homem voltasse a procurá-la.
— Verdade? Então...
— O comandante apareceu no dia seguinte. Trouxe-lhe presentes: uma lhama gorda e bem-tratada e uma mantilha de lã de fino acabamento. Dizia-se apaixonado. Em pouco tempo os dois estavam se casando.
— Mas talvez Acoapate gostasse mesmo de sua irmã e tudo não tenha passado de uma feliz coincidência.
— Não, minha senhora, o danado já falava em casar-se com a outra, a filha de um homem de posses e muito mais bela que minha irmã. Não fossem os préstimos de Kulkucaia, eles jamais teriam se casado!
— E a rival, a tal jovem? Ela nunca voltou a procurar Acoapate?
— Ora, para isso o feitiço de Kulkucaia também foi decisivo. Três luas após o casamento da minha irmã, a tal rapariga foi encontrada morta em seus aposentos, com a garganta roxa, como se durante a madrugada mãos invisíveis tivessem lhe estrangulado — respondeu Hauka com ar de riso.
Sulemaika deu uma gargalhada como há muito tempo não fazia.
— Ah, Hauka, Hauka! Só você, com suas histórias, para desanuviar os meus ânimos!
— Então, a senhora se decidiu a ir?
— Sim, Hauka, e você irá comigo. Avise o comandante Acoapate. Peça-lhe que me prepare um pequeno séquito, acredito que cinco homens será o suficiente. Amanhã à noite seguiremos para o local.
— Sim, minha senhora.
— Hauka, não se esqueça: boca fechada e avise o Acoapate para ser discreto. Não quero que ninguém fique sabendo, muito menos comentando por aí.
— Ninguém saberá, minha senhora, lhe prometo.
Quando a mulher deixou os aposentos, Sulemaika sentou-se, pensativa. A possibilidade do encontro com a misteriosa anciã havia trazido um fio de esperança ao seu desencantado coração. Suspirou fundo, o dia prometia. Era o último dedicado às celebrações a Inti. Mais tarde iria reencontrar o formoso príncipe aimará ao lado da desagradável sobrinha. Que os deuses fortalecessem sua alma!
[1] Sapa Inca: Inca Supremo, imperador. [2] Inti Raymi (Festa do Sol) - principal festa Inca, em que o imperador sacrificava uma lhama para o Sol (Inti) em troca de mais um ano de fartura e prosperidade. [3] Kuraka- chefe tribal, submisso ao poder do grande Sapa Inca. [4] Kollahuaya: curandeira. Kollahuaya significa aquele que carrega o medicamento.
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Capítulo 2- No antro da bruxa
O pequeno grupo seguia noite adentro guiado pelos raios amarelados de Mama Quilla.[1] Caminhavam em silêncio, cinco guerreiros bem armados e duas mulheres encapuzadas, a princesa Sulemaika e sua serva Hauka. Ao se aproximarem da margem do rio, Hauka emitiu três assobios imitando alguma ave noturna. Logo, dois vultos surgiram das sombras. À primeira vista pareceram dois curumins, mas ao se aproximarem, percebeu-se, na verdade, serem dois anões de semblante horrendo e disforme.
— Procuramos pela senhora Kulkucaia — dirigiu-se a mulher a um dos anões.
A criatura deu sinal para que Hauka e seu grupo o acompanhasse. Seguiram então por um caminho estreito no meio do mato espesso que margeava um rio. Um dos anões ia sempre à frente, enquanto o outro se incumbia de orientá-los para que não pisassem em pontos perigosos, como zonas de areia movediça, pântanos infestados por víboras e jacarés, e nichos com teias de aranhas peçonhentas e mortais. Após o longo e apavorante trajeto, saíram diante de uma ponte de cordas, à qual, cautelosos, atravessaram. O anão os informara para que não olhassem para baixo, era um despenhadeiro assustador. Após uns cinquenta passos, avistaram, oculta pela vegetação espinhosa, a entrada de uma caverna. Era ali o antro da feiticeira.
A princesa tinha o coração apreensivo. Acostumada com a segurança do palácio, as poucas vezes que viajara era sempre guarnecida por um grande séquito, por isso, vez ou outra, passava por sua cabeça se fora sábia a sua decisão. Nessas horas apertava mais forte a mão da serva fiel, que a confortava com o olhar.
Uma figura portando uma tocha acesa os recepcionou na entrada da gruta. Todos sentiram certa apreensão diante da mal-encarada senhora de cabelos esbranquiçados, presos por um gorro de lã já gasto pelo tempo. Do pescoço um chumaço de colares de dentes e unhas de preguiça caía sobre o colo largo.
— Seja bem-vinda à humilde morada de Kulkucaia, princesa Sulemaika.
Sulemaika sentiu o rosto corar. A velha de aspecto milenar a havia reconhecido.
— Por favor, entrem. Não é aconselhável que permaneçam do lado de fora — observou Kulkucaia em direção aos guerreiros. — Dentro de minha caverna estarão seguros.
Os homens procuraram o semblante do comandante. Estavam assustados, os quéchuas temiam e respeitavam o mundo oculto. A princesa acenou para que ouvissem a anciã e todos entraram. Kulkucaia pediu para que eles aguardassem em uma espécie de sala de espera, onde havia bancos feitos de troncos de árvores e moringas com água fresca. A princesa e sua serva acompanharam a idosa por um túnel até outro compartimento, onde uma mesa e bancos rústicos de toras as aguardavam.
Kulkucaia trajava uma túnica andina de tecido cru, a qual cobria seus fartos seios e deixava os volumosos braços à mostra, e sobre os ombros, um xale de lã de alpaca. Nos pés um calçado surrado de fibra vegetal. Ao conferir os presentes que Hauka trouxera em um bornal, esboçou um largo sorriso na cara rechonchuda. Eram víveres, como milho, mel, batatas, carne assada, além de mantas de lã de vicunha e um par de sandálias de couro de lhama.
— Ah! Como posso agradecer sua amável gentileza, princesa Sulemaika? De todos os presentes, os que mais me apetecem são esses calçados. — A mulher sentou-se para conferir se serviam. — Odeio andar descalça. Os que sua irmã me presenteou, cara Hauka, há muito se foram.
Os calçados ficaram perfeitos e a bruxa, satisfeita, serviu às suas visitantes, em duas cuias de cerâmica, um líquido grosso e esbranquiçado.
— Não carece se preocupar, senhora Kulkucaia — respondeu a princesa, sem perceber o semblante ansioso de sua serva, a ela dirigido.
— Carece sim, minha princesa. É leite com ovos de tracajá. A senhora precisa renovar as forças, pois o feitiço que irei conjurar necessita de que esteja forte e bem alimentada.
— Mas, eu...
— Beba, minha senhora, é preciso — disse Hauka levando o conteúdo à boca e, de uma vez só, esvaziando o recipiente. — É até bom.
— E necessário — completou a bruxa. — A senhora deve confiar no que digo, princesa. Só assim poderei trazer aos seus pés aquele que, de uma hora para outra, roubou a paz do seu coração.
A princesa sorveu todo o conteúdo da cuia. Quando terminou, mesmo procurando disfarçar, sua cara não era das melhores. Kulkucaia, que observava atenta, não conteve o riso. Por fim, serenando o semblante, comentou:
— Não a acho feia como sempre disseram.
A nobre sentiu a face corar. A bruxa, percebendo, disse mirando em seus olhos:
— Sinto que uma grande paixão lhe corrói a alma, princesa e sei como atenuar o seu sofrimento.
— Senhora Kulkucaia, é tudo o que mais desejo.
— Muito bem! Por favor, queira me acompanhar. Se preferir, Hauka pode aguardar aqui. — A princesa fez um gesto para que a serva a acompanhasse e a bruxa sorriu. Afastando uma cortina feita de palha de totora, Kulkucaia levou suas acompanhantes a outro ambiente, uma espécie de laboratório de bruxarias.
Era uma área ampla, onde havia diversos balaios de palhas, bichos ressecados e pendurados: cobras, ratos, raposas, jacarés; assim como grande quantidade de ervas secas. Jarras, alguidares e potes de barros jaziam por sobre uma mesa de toras. Convidada a sentar-se, a princesa se posicionou de frente à anciã. Entre elas, sobre a mesa tosca a bruxa acomodou uma faca negra de obsidiana e um alguidar de barro, onde despejou o conteúdo de um dos potes. Era um líquido azul e perfumado. Em seguida pegou a mão direita da princesa e a mergulhou nesse líquido, enquanto recitava encantamentos. Um vapor acinzentado desprendeu-se do recipiente.
A princesa sentiu o corpo estremecer, a bruxa deu sinal para que ela retirasse a mão do vasilhame e a enxugasse com um trapo que havia sobre a mesa. Hauka auxiliou a sua senhora, preocupada com a palidez que tomara o semblante da princesa.
Kulkucaia alheia, observava o interior do alguidar, o líquido mudara de cor, tornando-se avermelhado.
— Muito bem! — monologou a anciã após um breve período de silêncio. Erguendo os olhos em direção à princesa disse:
— Cuspa, minha senhora.
Sulemaika olhou, indecisa.
— Cuspa na vasilha — repetiu a bruxa enquanto, com uma das mãos, buscava por um dos cestos de palha que estavam próximos. Assustada, a princesa viu que algo se mexia dentro dele.
— Cuspa, princesa! — Sulemaika obedeceu.
A velha retirou a criatura, que a princesa percebeu ser um morcego. Com a faca negra decepou a cabeça do animal. O sangue caiu no vasilhame desprendendo um estranho chiado. Uma lufada de vento, surgindo de repente, ameaçou apagar as chamas das lamparinas de gordura.
— Chame o nome dele três vezes, minha senhora.
A princesa ouviu indecisa. Mas um novo comando da anciã a fez dizer quase gritando o nome do rapaz:
— Pumawari! Pumawari! Pumawari!
Hauka ouviu, surpreendida. Era pelo noivo da sobrinha que a princesa estava apaixonada! Conteve os pensamentos, surpreendida com uma névoa que se desprendia do alguidar da bruxa e aos poucos, adquiria a forma de um homem.
Sulemaika não conseguia acreditar. Era Pumawari, o príncipe aimará que surgia à sua frente. Ao lado do rapaz, outra figura, mas de aspecto luminoso, começou aos poucos a aparecer. Kulkucaia arregalou os olhos e gritou:
— Você não! Não o chamei aqui. Desapareça!
Ao grito da anciã, as lamparinas se apagaram e um frio intenso tomou conta do local.
A princesa, sacudindo o corpo, como se mergulhada em um transe, caiu ao solo. Hauka correu, tateando à sua procura, no escuro horrível que tragara o local. Era assustador o barulho dos bichos enlouquecidos tentando escapar dos balaios.
A claridade propícia de uma luz surgiu aclarando o ambiente; era um dos anões com uma lamparina. O semblante de Kulkucaia estava assustador. Procurando se recompor, dirigiu-se à princesa, agora restabelecida:
— Um espírito iluminado protege o rapaz. Ele jamais virá para a senhora. — A princesa a olhou desapontada, Kulkucaia prosseguiu: — Também não posso lhe aplicar um feitiço da juventude, pois seu corpo se encontra enfraquecido.
— Como? Minha senhora, do que está falando?
Hauka observou, preocupada. A bruxa, erguendo o rosto e fixando fundo nos olhos da princesa, respondeu:
— Quisera não ser preciso dizer-lhe isso, princesa, pois me afeiçoei à senhora, mas não posso ocultar que lhe resta pouco tempo de vida. Seu coração está fraco, na verdade, muito crescido. Não tem sentido falta de ar, vez ou outra?
— Sim... — A princesa baixou o rosto. Hauka percebeu que seu semblante estava lívido. — Mas não imaginei que fosse grave...
— Mas é! — sentenciou a bruxa. — Posso lhe indicar algumas ervas, ou melhor, eu mesma lhe prepararei um elixir, mas será algo que prolongará por mais um tempo a sua vida, nada, além disso.
— Mais uma vez me sinto castigada pelos deuses. Venho em busca de ajuda para sanar esse sentimento que se alojou em meu peito e me deparo com a sentença da minha morte!
— Não diga isso, minha senhora. — Hauka pegou nas mãos da princesa, que estavam frias. Sulemaika retribuiu apertando as mãos da serva entre as suas.
— Senhora Kulkucaia, não existe nada que possa fazer pela minha princesa? Disse que o coração dela está fraco, mas isso não se deve a essa avassaladora paixão? Sempre ouvi falar que de amor também se morre. A senhora não pode arrancar esse sentimento do coração da princesa?
— Não, Hauka, ninguém pode fazer isso, nem o feiticeiro mais poderoso. Mas vejo que a princesa já pertenceu a esse homem em uma vida passada, e não o respeitou, nem soube conservar esse amor. Como dizem uns, aqui se faz e aqui se paga, mas não é do meu feitio ficar dando conselhos. No entanto, há uma possibilidade, embora seja por deveras perigosa...
— Escute-me, senhora Kulkucaia — disse Sulemaika —, sei que não posso viver sem experimentar esse amor que me corrói o coração. Se tiver alguma coisa que possa fazer, então faça. Cobre o que quiser e eu lhe pagarei.
— Gosto de pessoas determinadas. Me dê sua mão, princesa.
— O quê?
— Você me disse para cobrar meu preço.
— Sim, mas...
— Não tema. Apenas quero que se comprometa.
A bruxa analisou as linhas da mão da princesa, depois disse fitando seus olhos:
— Darei à senhora a felicidade que deseja, mas quando chegar o momento, solicitarei uma vida em pagamento.
— Como?
— Através do meu feitiço, a senhora deixará de ser Sulemaika para se tornar a sua sobrinha.
— Mas isso será possível? — inquiriu Hauka. A princesa, admirada, parecia sem palavras.
— Sim, e com isso, além de salvar a vida da princesa, ainda lhe darei de consolo o amor tão cobiçado do guerreiro aimará.
— Sagrada Pachamama! — exclamou por fim Sulemaika. — Pela deusa, minha senhora, não brinque com minhas esperanças!
— Não estou brincando, princesa. Acredite no que digo.
— Mas — interrompeu Hauka — quando a senhora poderá realizar esse feitiço?
— Preciso que tragam a tal princesinha até aqui, um feitiço como esse não pode ser realizado a distância.
— Impossível! Ela está de casamento marcado para daqui a três luas. Ela jamais deixará o palácio nem se afastará dos cuidados da rainha, sua mãe.
O semblante da princesa voltara a se inquietar, Kulkucaia pousou a mão sobre seu ombro:
— Serena o coração, princesa. Como disse antes me afeiçoei a senhora, por isso irei até o palácio — e deu uma gargalhada. — Faz muito tempo que não visito a cidade, é chegada a hora da velha Kulkucaia deixar a sua toca.
A princesa pareceu acalmar-se, ao mesmo tempo que se sentira tomada por um pressentimento ruim. A voz da bruxa interrompeu esse instante de reflexão:
— Peço que não se esqueça, minha senhora, de que, no momento certo, pedirei a vida de uma pessoa em pagamento. No entanto, tranquiliza seu coração. Não se trata da sua vida, nem de seu amado, tampouco da serva que é sua única amiga, a qual tem a estima que nunca teve, nem por sua mãe.
A princesa volveu os olhos para Hauka, que retribuiu emocionada. Voltando-se para a anciã, respondeu decidida:
— Sim, senhora Kulkucaia, eu aceito e dou minha palavra de princesa, filha e irmã de reis.
A bruxa sorriu e, puxando a mão de Sulemaika, deu uma dentada na ponta de seu dedo mindinho. O sangue escorreu tingindo a boca da anciã, acompanhado do gemido da princesa. Kulkucaia, apertando o dedo da nobre mulher, fez cair algumas gotas no alguidar. Este chiou feito água caindo sobre brasa acesa.
— Uma ínfima dor comparada com a felicidade que lhe espera. Fiz o seu pacto com as forças escuras. Na próxima noite me aguarde em seus aposentos, que irei lhe fazer uma visita. Hauka, procure ficar acordada e mantenha as portas do palácio destrancadas.
— Mas, e os vigias de plantão? — inquiriu a serva.
— Você acenderá essa vela de gordura, a sua fumaça fará com que todos adormeçam. E a senhora, princesa, leve este preparado, deve passá-lo em todo o corpo antes de se deitar.
Era uma pequena cabaça com um tipo de banha perfumada. A princesa entregou o frasco para Hauka, que o guardou no bornal de pano que trazia atado à cintura.
— Faça o que mandei e lhe prometo que, em três luas, estará a senhora se casando com o belo mancebo no lugar da sua desagradável sobrinha.
A princesa olhou satisfeita e, quando fez menção de ir embora, a bruxa barrou-lhe a passagem.
— Vocês devem ficar. Deixem para retornar amanhã, quando os raios de Inti expulsarem as trevas mais escuras.
— Mas... — A princesa olhou para a serva, indecisa.
— Não posso garantir-lhe a segurança até sua casa, princesa. Horrores inomináveis tomam conta desta floresta e hoje forças obscuras foram invocadas. — Fechando os olhos por alguns instantes, a bruxa fez uma pequena pausa, a qual ninguém se propôs a quebrá-la. Instantes depois, abrindo os olhos, prosseguiu:
— Seus serviçais já se encontram dormindo e meus lacaios já lhes arranjaram acomodações. É necessário que fiquem.
Um uivo trazido pelo vento ajudou a princesa acatar os conselhos da anciã.
— Nós ficaremos, senhora Kulkucaia.
— Mandarei os anões armarem mais duas redes ao lado da minha. Mas antes, vamos comer alguma coisa, pois tudo isso me abriu um apetite danado! — A velha largou uma risada alta e desregrada. Hauka fingiu acompanhar-lhe. A princesa, no entanto, parecia abatida e temerosa. Até onde seus caprichos a levaria?
[1] Mama Quilla — a deusa da lua na mitologia inca.
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Capítulo 3 - O feitiço
Sulemaika aguardava ansiosa. A noite já havia caído sobre Cusco e, a qualquer momento, Kulkucaia estaria chegando. Pelo menos foi o que prometera na noite anterior.
Naquela manhã a princesa havia retornado com seu pequeno grupo ao palácio e, cansada, fora direto para a cama. A noite no antro da bruxa não fora das melhores. As poucas horas em que conseguira dormir, fora assaltada por um sinistro pesadelo, no qual se via mais jovem e tendo uma criança aos braços, que identificara como filha. Havia também em seu estranho sonho uma coisa grotesca que parecia um misto de gente e de árvore, um monstro que, ao estender as garras, tentava a todo custo tomar-lhe o bebê. Ela sabia que a criatura tencionava levar sua criança para longe, mas ela, mesmo aterrorizada, a defendia com afinco, arriscando a própria vida na empreitada.
Dando de ombros e procurando livrar-se da lembrança do sinistro pesadelo, buscou espairecer a mente pensando no amado. Estava lindo naquela tarde durante as celebrações a Inti, trajando uma veste confeccionada com pele de jaguar, o torso parcialmente nu, no qual era possível visualizar as marcas dos músculos, aqueles braços rígidos, o olhar faiscante, embora voltado quase sempre para a noiva. Ah, como o amava! Como era difícil ocultar esse sentimento! Mas era necessário que se acalmasse e aguardasse. Sentia que em breve a felicidade estaria sorrindo para ela, que merecedora, não a deixaria escapar. Por muito tempo deixara de viver. Era agora digna de alguma alegria!
Sulemaika tinha o rosto corado e seus pensamentos criavam desculpas, firmando meias verdades no intuito de driblar a voz de sua consciência, que vez ou outra parecia emergir, alertando-a para o que estava prestes a realizar em nome desse impulsivo amor. Nesses momentos, a princesa, num esforço inconsciente, se apegava ao semblante do jovem amado. Diante da figura do belo Pumawari, toda e qualquer dúvida se esvanecia como areia ao vento.
Voltou a pensar nas celebrações daquela tarde e um calor enrubesceu ainda mais o seu agitado semblante. Lembrou-se de que em certo momento se apanhara observando o rosto do rapaz e seus olhos deram de encontro com os da sobrinha. Sentiu todo o desdém da jovem. Mais tarde a pegou cochichando com a mãe e olhando em sua direção. A cunhada dirigiu para ela um sorriso debochado. Pensou em sua aparência e pareceu-lhe nesse momento ouvi-las chamando-a de “princesa feia”. Deixou o local na companhia de Hauka, retornando à clausura dos seus aposentos. Estava irritada, as lágrimas desciam por sua face e sentia a garganta apertada. Ouviu risos distantes. Que eles se divertissem enquanto podiam, logo chegaria sua vez! Pensou no acordo que fizera com a bruxa. Se ela lhe pedisse a vida de Nayarak, ou de sua mãe, naquele momento as entregaria com o maior dos prazeres.
Encostou-se por fim em seu leito e em pouco tempo adormeceu. De madrugada, uma mão a despertou, era Hauka. Ao abrir os olhos avistou a serva na companhia da bruxa. Kulkucaia havia mantido a palavra.
— Vejo que seguiu direito minhas recomendações e tem o corpo besuntado na mistura que lhe dei, princesa. Agora beba desse preparado. — E voltou-se para a serviçal. — Hauka, nossa convidada acaba de chegar.
A mulher olhou desconfiada para a princesa e, puxando a cortina de totora, deu de cara com Nayarak. A jovem caminhava de olhos fechados com passos sonâmbulos e adentrou os aposentos de Sulemaika, parando em frente à bruxa.
A um aceno de Kulkucaia, Nayarak deitou-se em uma esteira de palha previamente estendida por Hauka. A feiticeira pegou mais unguento no bornal que trazia a tiracolo e passou a esfregar no corpo da jovem. Um odor inebriante tomou conta do recinto.
— Rápido, Hauka, me ajude a espalhar esse preparado pelo corpo de Nayarak. E a senhora, princesa, procure não se envolver com nada. Deite-se do outro lado da esteira e permaneça tranquila. Se sentir sono, durma, facilitará o meu trabalho.
Sulemaika ouviu sem questionar. Logo, um sono pesado a envolveu.
A bruxa, nesse momento, retirou de seu bornal e depositou próximo de si uma faca de ouro que parecia uma pequena espada, uma vela grossa de sebo, um colar de unhas e dentes de preguiça, e uma máscara feita de ossos e penas. Pegou o colar e colocou-o em volta do pescoço da velha serva.
— Hauka, você despejou do líquido que lhe dei em cada porta do palácio?
— Sim, senhora, inclusive nos aposentos do monarca, e deixei a vela acesa no salão.
— Muito bem! Assim ninguém despertará, aconteça o que acontecer. Hauka, é necessário que faça tudo o que eu mandar e não tema nada. Com este colar que eu lhe dei você está protegida. Forças contrárias tentarão atrapalhar o ritual, mas saiba que já vim preparada. Se falharmos, a princesa morre.
Hauka alarmada consentiu com a cabeça. Amava Sulemaika como a filha que nunca tivera. Faria tudo por sua felicidade e a defenderia com a própria vida se fosse preciso.
A bruxa pegou a vela e a acendeu, enquanto recitava encantamentos em um idioma desconhecido por Hauka. Uma rajada de vento rodopiou no recinto ameaçando apagar a chama. A anciã arregalou os olhos, deu três assobios e o ar se acalmou. Pegou o braço esquerdo da princesa Nayarak e nele fez um corte próximo ao pulso, no entanto, sem atingir nenhuma veia principal. Puxou o braço direito de Sulemaika e repetiu o feito. Em seguida, auxiliada por Hauka, colocou um corte sobre o outro — o braço de Nayarak sobre o de Sulemaika —, amarrando-os com uma tira de couro cru. Logo, um vapor começou a escapar da boca de Nayarak e, em seguida, da de Sulemaika. Hauka, admirada, viu quando esses vapores começaram a adquirir as formas das duas princesas.
A forma etérea de Nayarak olhou assustada para a bruxa e tentou voltar para o corpo, mas a anciã a impediu com a chama da vela.
— Alma da princesa Nayarak, eu a proíbo de retornar ao seu corpo, ele não lhe pertence mais.
A alma quis reagir, mas duas sombras escuras e pequenas surgiram e seguraram os seus braços. Hauka percebeu serem os espíritos dos lacaios, os anões horrendos da bruxa.
— Alma da princesa Sulemaika, siga o brilho da chama desta vela e entre em sua nova morada.
A alma de Sulemaika abriu os olhos e seguiu a claridade da vela. Kulkucaia, nesse instante, com a faca de ouro cortou o que parecia ser uma espécie de cordão umbilical que unia a alma de Sulemaika ao seu corpo original. A alma deu um gemido profundo e seguiu a claridade da chama, como o inseto fascinado corre de encontro à luz. A bruxa, então, derramou três pingos de gordura na boca antes besuntada de Nayarak. A alma de Sulemaika, regressando à forma vaporosa, penetrou na boca da jovem princesa.
Um suspiro fundo desprendeu-se do corpo de Nayarak, que recebia uma nova proprietária nesse instante.
Voltando-se para a alma de Nayarak, Kulkucaia localizou seu cordão e o cortou com a faca de ouro, tirando dela um lamento profundo. A alma tentava escapar, mas as sombras sinistras seguravam-na com afinco.
— Ouça, alma da princesa Nayarak, você deve ir embora. Seu tempo de vida acabou. Não deixarei que habite o corpo da sua tia, pois iria atrapalhar nossos planos. Por isso, vá embora daqui!
A alma de Nayarak quis avançar em direção ao corpo inerte da tia, mas a velha colocara sobre o rosto de Sulemaika a máscara horrenda. Ao recitar palavras sinistras apagou a chama da vela e o ambiente mergulhou num negrume terrível. Um grito se ouviu, seguido de uma gargalhada horripilante.
Hauka tremia de bater os dentes. Kulkucaia recitava suas preces. Como por mágica, a vela se acendeu. Hauka, apavorada, visualizou uma sombra com formato humano, mas com a cabeça grotesca de um pássaro, sabia que era um demônio. Um vento sinistro abriu a janela e tanto a forma sombria, como as figuras dos anões se dispersaram no breu da noite.
— Está feito — concluiu a bruxa. — Graças aos deuses sombrios, conseguimos.
A princesa Sulemaika, agora no corpo de Nayarak, nessa hora abriu os olhos e sorriu reconhecendo Hauka e Kulkucaia e, em seguida, voltou a fechá-los, mergulhando em um sono profundo.
— Durma bem, princesa Sulemaika. Amanhã, quando acordares para a vida, não serás mais a princesa feia, mas a bela noiva do príncipe Pumawari.
A bruxa emitiu uma gargalhada sinistra, o que fez o sangue de Hauka gelar. Ela procurou um assento e levou as mãos à cabeça. Os gritos da alma da princesa Nayarak não lhe saíam da cabeça. O que elas haviam feito? Será que os deuses, algum dia, as perdoariam por tamanha profanação?
O ator e apresentador Antonio Matos fala sobre o livro no programa Papo com Antonio Matos transmitido pela rádio e internet via Instagram.
@antonio_matos_ator
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