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Honorato e Cobra Maria

Atualizado: 13 de out. de 2023

Os Seres de Orokaba — Episódio 6


Duas crianças excepcionalmente concebidas, oriundas da relação de uma jovem indígena com uma sombria entidade das águas. Conheça a lenda de Honorato e Cobra Maria, um marco na mitologia amazônica e surpreenda-se com sua participação no livro Moara, a princesa dos Incas e no fantástico universo de Orokaba.





A lenda dos irmãos cobras


Contam as lendas paraenses que uma jovem da etnia tapuia certa vez ao banhar-se nas águas do rio percebeu-se grávida. Dessa insólita gestação nasceram duas cobras. Desesperada, a mãe consultou o pajé que informou que ela não poderia matar as crias, mas jogá-las nas águas que era seu devido lugar. A jovem assim o fez, e as crianças ou cobras tornaram-se adultas. Honorato, o rapaz, era de índole pacífica, enquanto a irmã, Maria Caninana, maléfica por natureza. Ela virava embarcação, atacava os pescadores, aprontava mil diabruras. Por fim, após repreendê-la inúmeras vezes sem sucesso, Honorato ou Cobra Norato como era conhecido, a matou, livrando a população local das maldades de Caninana.

Cobra Norato ansiava viver entre os humanos e livrar-se da maldição da cobra. Nas noites de lua deixava a pele na beira do rio e tomava a forma de um galante rapaz, porém antes do dia nascer precisava retomar a pele reptiliana e voltar ao rio. A maldição só terminaria quando alguém corajoso o suficiente, derramasse leite materno em sua boca, quando ele estivesse transformado em cobra e, depois, cortasse o seu rosto com uma faca de ferro.

Certo dia Norato encontrou um jovem soldado que teve coragem de encarar a sua forma de cobra e cumprir o ritual. A partir daí, o rapaz, livre do sortilégio, pode desfrutar a vida como ser humano, casando e tendo seus filhos.

Essa é a base das lendas amazônicas sobre os irmãos cobras, havendo algumas variações. Segundo alguns locais as crianças eram filhas de Boiuna, a cobra Grande, em outras do Boto e em algumas, não se menciona o pai. Outros dizem que não foi Norato que matou a irmã, mas um grupo de animais da floresta, revoltados com as maldades de Caninana.

Em 1931 o poeta modernista brasileiro Raul Bopp lançou um livro intitulado “Cobra Norato”. A obra é escrita em forma de poesias e conta uma história inspirada na lenda da Cobra Norato.



Honorato e Cobra Maria no Mundo dos Encantados



Em Moara, a princesa dos Incas, a lenda dos irmãos cobras também está presente e como a narrativa se desenrola em meados do século XVI, toda a trama foi adaptada a esse período para funcionar em perfeita harmonia com os demais personagens. Quando os espanhóis conquistaram e saquearam o império inca, depararam-se com a lenda de Eldorado, um local escondido nas selvas amazônicas, depósito de riquezas imensuráveis. Muitas foram as expedições em busca dessa cidade perdida, nas quais indígenas andinos eram usados como guias. Em uma dessas expedições alguns desses guias fugiram, alcançando a região do atual estado do Acre. Um grupo de soldados seguiu em seu encalço, mas muitos eram os perigos da selva. Alguns foram mortos flechados por omáguas, outros picados por animais peçonhentos. Dois soldados foram presos e conduzidos a uma aldeia tuiuca. O cacique de índole pacífica os acolheu, estavam feridos. Com o passar dos dias, apenas um sobreviveu, seu nome Antônio de Almeida. O rapaz passou a viver na aldeia e em pouco tempo enamorou-se da bela jovem que cuidara dele, seu nome Itacira, a filha do cacique. O chefe, percebendo o entusiasmo da filha, autorizou o casamento. Convém observar que eles se comunicavam por meio de um dialeto aimará que o soldado aprendera durante os quatro anos que vivera em Cusco, a capital do império inca conquistado pelos espanhóis. Após a morte do cacique, ferido em uma caçada, Antônio e Itacira decidem deixar a aldeia e o rapaz auxiliado por um grupo de tuiucas ergueu uma casa de pedra e barro no meio da selva. Lá eles tiveram dois filhos, João e Francisca. Quando adultos, João se enamorou de uma mulher de uma aldeia próxima e foi morar com ela. Francisca, que se tornara uma bela jovem, auxiliava a mãe em seus afazeres e adorava passar algumas horas a beira d'água brincando com os bichos e os peixes. Certa ocasião os pais perceberam que ela havia entristecido, mal terminava as atividades diárias e retornava à sua rede. Inquirida pelos pais, se recusava a dizer o que estava acontecendo. Os dias se passaram e sua barriga começou acrescer, estava grávida. Francisca se negava a dizer o nome do pai, sua tristeza aumentava e ela definhava a olhos vistos. A seguir alguns trechos do livro Moara, a princesa dos incas, em que Itacira relata para a princesa o ocorrido com sua filha: Quando a barriga de minha filha estava bem grande e o filho para nascer, ela me chamou e disse: — Minha mãe me perdoe pelo desgosto. Eu me perdi pensando haver encontrado o homem da minha vida, mas muito me enganei. Aquele homem não era gente. Era o Diabo que papai fala em suas histórias. — Não diga besteira, minha filha, essas coisas não existem — disse isso, mas o couro da minha cabeça parecia pular de tanto se arrepiar. — Existe sim, minha mãe e por causa dele, logo não estarei mais aqui. Por favor, mamãe, cuide de meu filho. Não deixe que nada de mal lhe aconteça. Ele não tem culpa do pai que tem e da mãe fraca que não poderá criá-lo. — Pare com isso, minha filha, nada de mal vai acontecer. — Prometa mamãe, por favor! — Sim, filha minha. Itacira promete.

Francisca sossegou e dormiu. Olhei para ela, estava acabada. Não tinha peso, nem cor. Deixei-a dormindo na sua rede e fui chorar lá fora. Mandei chamar o pajé da aldeia mais próxima. Ubajara ao tocar em minha criança fez uma cara de desaprovo. Recitou suas encantações e por fim, chamando eu e meu marido, nos disse: — Essa menina carrega duas crianças na barriga e uma ainda vai matar a outra. O pai delas não é desse mundo, ele veio de outra terra, do Vale de M’boi! — Por Deus do Céu, quem é esse homem, que vou matá-lo! — Meu senhor, ele não é um homem. Sua filha foi iludida por Boiuna, que veio até ela na forma de um homem, mas na verdade é uma cobra. — Que maluquice é essa? O senhor quer que eu acredite numa loucura desse tamanho?

Antônio estava tão nervoso que começou a tremer, passar mal e caiu desmaiado. Ubajara cuidou dele que ficou enfermo entre a vida e a morte. Já não me bastasse o infortúnio da filha! Mas os dias passaram, meu marido se recuperou e numa noite de chuva, Francisca pariu. Nasceram duas crianças. Um menino e uma menina. Minha pobre filha não resistiu e morreu logo em seguida. Fiquei desesperada, chorando ao seu lado e não fiz conta dos pequenos. Quem cuidou deles foi Tapira, uma velha parteira que viera a pedido de Ubajara. Tapira cuidava de tudo, sempre ajudada por Antônio, que mesmo triste, ficou feliz com os netinhos que pareciam tão bem. O primeiro, Antônio, chamou Honorato, dizendo: Deus te abençoe meu neto. “Você será um homem muito honrado”! Dizendo assim, o ergueu para o alto, como se fosse apresentá-lo a Deus. Quando meu marido segurou a menina e disse seu nome é Maria, nome da mãe de Deus, a criança se retorceu nos braços dele e lhe deu uma dentada no pescoço, com dentinhos finos de cobra, que ninguém havia percebido. Antônio caiu estrebuchando. O rosto roxo. Morrendo logo em seguida. Fiquei louca. Puxei a criança por um braço, joguei num balaio e corri para o rio. Atrás de mim, ouvia Tapira gritar. Atirei aquela coisa na água sem pensar duas vezes. Corri de volta para casa em direção do menino, ia dar fim nele também, mas parei sem saber o que fazer. Quietinho, ele me olhava. Os olhinhos lindos, eram iguais aos de meu marido morto no meio da casa. Gritando, aos urros, rasguei a roupa e aos prantos, rolei pelo chão. Havia enlouquecido! Tapira se agarrou comigo. Fui amarrada e ela me empurrou goela abaixo uma beberagem preparada por Ubajara. Dormi dois dias sem acordar. (Capítulo 5 - A casa de Itacira- do livro Moara, a princesa dos Incas)



O bem contra o mal


Como verificamos através do relato de Itacira, a primeira maldade de Maria Caninana fora a morte do avô. A criança nascera má por natureza. O irmão, Honorato, era seu oposto. Conforme o livro, os irmãos são criados por Tapira, uma mulher capelobo oriunda de Orokaba e quando adolescentes, Boiuna, o pai deles, vem em busca de Maria, com a qual sente afinidade, desprezando Honorato que permanece com Tapira.

Como era a relação entre os irmãos segundo relato de Honorato:

— Minha irmã sempre desejou a minha morte e eu não percebia isso. Algumas vezes tentou me afogar no rio. Na água sua força triplicava. Ela sempre se desculpava, dizia não ter raiva de mim, que fora sem querer, que algo havia dominado sua vontade e eu tolo a perdoava. Passei a evitar a água, sempre que ela estivesse por perto. A seguir um trecho que descreve Honorato: “Honorato era um belo rapaz. Do avô herdara os olhos acinzentados, os traços do rosto e o porte físico. De Francisca, sua mãe, a cor da pele: morena bronzeada e diversos traços do rosto, incluindo a boca grande com lábios salientes e bem delineados. Os cabelos lisos como os da avó eram negros e longos, descendo às costas, presos por uma tira de fibra vegetal. Trajava um saiote de couro, nos braços e tornozelos tiras trançadas nas cores vermelha e negra.” (capítulo 14 — O Relato de Honorato) Descrição de Cobra Maria ou Maria Caninana como ficara conhecida Maria : De súbito, um vento gelado invadiu a casa.... Na soleira da porta, se revelou a forma esguia e bem-talhada de uma mulher. — Maria Caninana! — Deixou escapar Silita, abraçada à irmã, a qual tremia acocorada a um canto da sala. — Caninana! É como os tolos me chamam! — disse a mulher enquanto dava os primeiros passos no interior da casa. Seus olhos esverdeados vasculharam todo o ambiente. Caminhava de forma sutil, como se cada passo fizesse parte de uma exótica coreografia. Seu corpo parecia ter sido esculpido magistralmente e era adornado por uma vestimenta esverdeada feita de couro de cobra. A veste deixava parte dos seios e as pernas à mostra. Os cabelos claros e esverdeados desciam por suas costas, terminando em sua cintura. Era bela e encantadora, mas percebia-se algo demoníaco em toda aquela formosura.


A lenda de Honorato e Cobra Maria representam a eterna disputa entre o bem e o mal, entre a luz e a treva, e isso pode ser percebido através das escolhas e afinidades desses personagens. Honorato tem o apreço da avó e de Tapira, a mãe adotiva, ele se associa a Quetzal um príncipe exilado injustamente de seu reino pelo irmão usurpador. Ele não pensa duas vezes em auxiliar seus amigos, renegando muitas vezes os próprios interesses a segundo plano. Maria é impulsiva. Ela tenta contra a vida do irmão com o intuito de agradar ao pai, provando ser merecedora da atenção deste e do trono que ele governa. Ela se associa a criaturas trevosas como a Bruxa Kulkucaia, ameaça a comitiva da princesa inca Moara, quando de sua chegada a Pindorama, seguindo sua embarcação na forma de uma imensa sucuri. Torna-se temida e odiada por muitos. As pessoas temerosas a chamam de Caninana ou Cobra Maria.


No próximo episódio de Os Seres de Orokaba falaremos sobre os homens-cobras, a raça que habita o reino sombrio de M'boi, governado pelo pai de Honorato e Maria Caninana, o sinistro Boiuna.

Abraços fraternos.

Alexandre Menphis







 
 
 

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